Memórias de Vera Artaxo

Vera Artaxo faleceu em julho de 2010. A jornalista trabalhou na TV Globo, Record, Bandeirantes, Folha de S.Paulo  e atuou durante quinze anos na Editora Abril. Há dois anos tive a oportunidade de entrevistá-la. Na ocasião, escrevia um livro, junto com a jornalista Thaís Renesto, sobre o dramaturgo Plínio Marcos, seu ex-marido.

Quem era o Plínio Marcos?

O Plínio era uma pessoa muito incomum, né? É… Que vivia seu próprio discurso, não havia nenhuma defasagem entre o que ele mostrava e o que ele era de verdade. É… Então, no cotidiano, ele era tão fácil e tão difícil quanto parecia, né? Ele era ao mesmo tempo a pessoa mais doce que você possa imaginar, né? Um homem extremamente generoso, irmão do seu semelhante e uma figura é… furiosa com as injustiças, com as coisas as quais ele não concordava e tal. Eu particularmente achava muito fácil conviver com ele.

Por que ele foi para o jornalismo?

Olha, naquela época o jornalismo atraia escritores de um modo geral, né? Não era uma profissão regulamentada, de diplomados etc, como está voltando a ser agora, né? É… Então era muito natural que um escritor escrever em jornal, era bem natural. Como ele era um cronista, assim, uma pessoa muito rica do dia a dia, né? Ele era capaz de ver com olhos diferentes as coisas que aconteciam e de acrescentar comentário, aprofundando todas essas questões relativas ao homem e a crítica relativa aos sistemas todos, relativo à religião, ao sistema de poder, ao regime político, tudo isso e também com um toque de humor que era bem marca a registrada dele também, né? Sempre tinha um toque de humor. Então, é… Registrar esse cotidiano, a crônica é um meio certo, é um gênero certo pra você registrar essas observações do cotidiano. E o jornal, pela periodicidade, é um meio mais adequado do que o livro, né? Você fica em cima daquilo que está acontecendo no dia. Algumas crônicas não são tão vinculadas ao cotidiano assim, elas são mais abrangentes, né? E muitas estão publicadas em livro, por exemplo: Histórias das quebradas do Mundaréu, é um livro de crônicas, né? Que são coisas que têm um valor literário assim mais amplo. Eu acho que era natural ele ir pra jornal. Eu acho que seria estranho se ele não tivesse ido pra jornal e revista, né?

 

 

Ele se arriscou a fazer matérias do dia a dia?

Não, como repórter. Assim, não que eu saiba pelo menos… Ele fez algumas coisas diferentes, por exemplo, essa crônica mesmo, houve momentos em que ele publicou uma série que é uma história baseada em uma favela, e que viraria um programa de TV, um seriado de TV, enfim, uma coisa assim, era a Dercy Gonçalves que ia fazer inclusive. Era muito divertido aquilo, assim, nesse… Nesse estilo Família Trapo, uma coisa assim só que ambientada na favela, né? Em outros momentos ele foi cronista de futebol, que era uma coisa que ele entendia profundamente, amava futebol, ele foi jogador profissional na juventude, né? Mas assim, futebol e arte não combinam, porque futebol tem uma disciplina, tem exercício, tem concentração, tem que dormir cedo. É tudo ao contrário do que é a vida boêmia, né? Que… Poetas e escritores e músicos levam… Mas aí ele juntou como escritor. Ele abordou muito futebol, muito. Escreveu várias coisas importantes sobre o futebol…

Você sabe em qual veículo o Plínio ficou satisfeito em trabalhar?

Olha… Acho que foi a Última Hora… Folha, Veja, teve jornais do resto do país, teve o Jornal da Orla, de Santos, O tempo, de Belo Horizonte, teve bastante coisa, é… Então, claro que ele adorava escrever na Folha, na Veja, enfim. Mas o tempo da Última Hora foi começo dos anos 70, final de 60. O diretor era o Samuel Wainer e… O Samuel era uma figura maravilhosa, esse ambiente de redação era muito rico, né? É  completamente diferente hoje, acho até difícil pra um jovem entender como é que era, porque a tecnologia mudou muito as coisas…Era telex, não existia nem fax, nem celular, nada disso, então, era aquela coisa, chegava uma notícia no telex, alguém gritava a redação inteira dizendo: “Olha aconteceu isso em tal lugar, né? Não é como hoje que você sabe o tempo inteiro o que está acontecendo em todos os lugares e tal, então era mais integrada, as pessoas conversavam mais, compartilhavam mais, não tinha tanta baia, cada um com a sua máquina, né? Era um mesão com máquina de escrever assim, então era muito rico isso… Era uma vivência inclusive, muito interessante. E o Samuel era uma figura maravilhosa, o Plínio adorava o Samuel, então foi… foi uma época bem legal.

 

Como você vê o tratamento da mídia em relação ao Plínio Marcos. Quanto ao Jornalista e o dramaturgo?

Ah, muito pouco como jornalista, muito pouco como jornalista… A lei foi muito rigorosa na época com relação a exigência do diploma, né? É… Estava começando no final dos anos 60 essa obrigatoriedade e logo terminou a fase em que podia ter provisionado nas redações, que era jornalistas não diplomados. Então já faz certo tempo, é… Eu acho que assim, é… A contribuição do Plínio na imprensa é semelhante a de Nelson Rodrigues também, que também foi cronista, também cronista de futebol, a obra dramatúrgica é muito maior… E a obra no jornalismo é meio conseqüência dessa obra maior… Então, é mais ou menos natural que não seja tão valorizado, mas eu acho maravilhoso que vocês tenham levantado esse lado, porque justamente o menos abordado, e numa época em que a censura era muito pesada, né? Na Veja quase não saia à coluna do Plínio. Ele era colunista, mas não saia nunca porque era sempre censurado. As crônicas sobre futebol eram censuradas. Então ele acabou perdendo alguns espaços, né? Por conta disso, de censura e depois foi pra outro caminho, começou os estudos exotéricos, começou a se dedicar mais a isso né? Depois que houve a abertura política, ele se permitiu se voltar mais pra esse lado, que era uma coisa que sempre teve presente na vida dele, mas da qual ele tinha se afastado, em função da necessidade de uma luta mais ferrenha, né? Contra a ditadura.

 

Você vê jornalismo nas obras dele?

Nas obras do Plínio? Acho que tudo é reportagem. Tudo é reportagem. Navalha na carne é uma reportagem, Dois perdidos é uma reportagem, o Querô é efetivamente uma reportagem, né? Eu acho que tudo é reportagem, que ele é mesmo um repórter de um tempo mau, como ele mesmo se autodenominou. O que ele mostrava no palco, eram reportagens. Acrescidas da transcendência que a arte traz e a reportagem não traz. Mas a reportagem é o começo, é o começo… Era um olhar em cima da realidade, né? Alguns textos, assim como Vinte e cinco homens, por exemplo, foram extraídos diretamente do noticiário, então, em cima de um fato. No caso, Vinte e cinco homens atearam fogo às vestes em uma cadeia de Osasco, que o comoveu tanto que ele escreveu um texto, que é pungente, é maravilhoso esse texto. A Barrela, a primeira peça dele, surgiu de um caso verídico… Saiu na imprensa. O garoto era vizinho, morava na rua dele, o menino que foi currado. Ele passou uma noite na cadeia e viveu aquele pesadelo que a Barrela retrata. Eu acho que as coisas são muito amalgamadas, sabe? Quando uma pessoa faz do seu trabalho, a sua religião, o seu lazer, enfim, quando tudo nela está amalgamado, tem uma alquimia, é… Tudo é tudo, quer dizer, é reportagem, é a arte é… Não tem, não tem limites, não tem fronteiras. É muito sutil a fronteira entre uma coisa e outra.

 

Você acha que ele inovou o jornalismo, trazendo o jornalismo para o teatro?

Ah sim, muita coisa é baseada em fatos reais, mesmo. Claro que ai tem a licença do poeta… Não é reportagem pura, não é jornalismo puro. É… Depende do ângulo que você olha, por exemplo, Dom Helder, por exemplo, dizia que a obra do Plínio é extremamente religiosa… Dois perdidos, por exemplo, era para Dom Helder uma peça religiosa. E olha que a peça não toca em religião, né? Então, isso ai é tarefa mesmo paras os estudiosos… Darem os rótulos entendeu? O Plínio jamais se preocupou em classificar as coisas que ele fazia e eu também não vou fazer isso.

 

Por que Plínio decidiu abordar esses temas?

Naquela época, anos 40, 50, é…  O que você via no teatro era aristocracia. Você não via o que você via nos palcos e tal. Você não via o povo. O Nelson Rodrigues que veio antes, eu cito sempre o Nelson porque eu acho o Nelson realmente importante, eu acho que Nelson e Plínio serão sempre reconhecidos como os dois grandes autores brasileiros do século XX. O Nelson veio antes, abordando a classe média, né? E o Plínio tinha uma convivência por causa de Santos, do futebol, do cais do porto. Santos dos anos 50 era uma universidade aberta, porque o porto, tudo chegava por ali, né? Tudo que era cultural, enfim, os cabarés daquela região, eram muito ricos, né? Teve o pascoal Carlos Magno que foi para lá. Fez um grupo de teatro amador lá, que irradiou uma evolução enorme para o Brasil inteiro, em matéria de teatro. Então, ele estava familiarizado com isso.  Ele se sentia irmanado com os menos favorecidos, né? Então, é isso: é jogador de sinuca, é prostituta, é cafetão, é menor infrator. Enfim, essas figuras não tinham voz e ele teve vontade de emprestar a garganta dele pra essas pessoas. Mas isso não é autobiográfico, entende?

As pessoas confundem muito achando que o Plínio era uma pessoa de classe média. Todos os irmãos dele estudaram e tudo. É que ele era um ser rebelde, né? E que não se encaixou direito nas coisas e foi rompendo com tudo, né? Mas ele não era um morador de rua ou enfim, qualquer coisa do gênero. Ele era uma pessoa que tinha acesso a todas as coisas que um pessoa de classe média tinha. Ele tinha um diferencial que era dele, e tinha esse olhar generoso que o fez olhar para quem não tinha voz, né? Quem menos tinha tudo, quem menos tinha dinheiro, quem menos tinha acesso, quem menos tinha educação, quem menos tinha saúde. Então, ele quis abordar essas pessoas, que não estavam no nosso cenário, que ninguém os enxergava.

O que você nunca contou pra ninguém sobre o Plínio jornalista, alguma curiosidade?

Ele vendia a mesma história para várias pessoas. Essa era a malandragem. Ele escrevia uma coisa que tava muito boa e ele vendia aqui, ai ele ia ali em outra redação e vendia lá… Ai de repente os caras descobriam “Pô, mas isso ai já vendeu pra num sei quem”, e no fim ficava no folclore. Ficava tudo por isso mesmo, sabe? Mas esse era um traço, assim, porque ele tinha uma coisa de moleque, de fazer molecagem que ele conservou até o fim da vida. O Plínio era um moleque e você não acreditava que ele tinha a idade que tinha, assim, convivendo com ele, porque ele era muito irreverente mesmo, o tempo todo, né? E ele fazia essas molecagens. Não tava nem ai.

 

Como foram os últimos anos do Plínio no jornalismo?

Nessa época não tinha mais censura, né? Mas as coisas foram mudando muito nas redações, né? Novas gerações vieram e ele sempre gostou de Santos. Sempre quis falar com Santos. Ele ia foi para Santos uma vez por semana, pelo menos. Durante toda vida. Ele nunca passou uma semana sem voltar para a cidade dele. Ele ia lá, ia visitar a mãe, ia visitar amigos. Todo réveillon ele fazia um jogo de veteranos, uma pelada de praia. Todos os anos, até o fim. Ai quando ele não podia mais jogar… Então, Santos ele nunca abandonou, sabe? Ele não se distanciou de Santos… Escreveu para o jornal da Orla, quando o jornal da Orla surgiu… Procuraram por ele. Ele celebrou, né? De voltar a escrever para um jornal da cidade. Foi muito legal. O jornal O Tempo, de Belo Horizonte, também convidou. Se convidasse, ele escrevia… Contanto que tivesse liberdade. Que ninguém quisesse pautar sobre  o que ele poderia falar ou não.

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